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escrevo a dor e o prazer de viver vivo para escapar da morte morro e acordo cada vez mais forte

domingo, 19 de julho de 2009

O convite de meu pai

Queridos e queridas,

Hoje é um dia muito especial. Para os gremistas, que ganharam o Grenal no ano do centenário do Inter. É especial para os colorados, por ser uma data que ficará marcada de azul na história do clube.

Hoje é um dia especial, porque aconteceu alguma coisa na vida de todos. Seja positivo ou negativo, sempre acontece algo em cada dia de nossas vidas. Tem dias em que a gente está alegre, em outros está melancólico. Há dias de vitórias, conquistas. Outros, de derradeiros fracassos. Perdas. Ganhos.
Quando há empate, haverá também o desempate.
Todos os dias são dias especiais.
O que muda, é o motivo.
Por exemplo. Década de 70. Eu era uma "guria". Além de brincar com o quadro negro e o giz branco, que já anunciavam a minha vontade inconsciente de ser professora, o que eu mais fazia em minhas horas vagas (ou seja, quando não estava na escola), era ouvir muito rock and roll, ver desenhos e seriados de televisão. É claro que eu também brincava, e muito, com minhas amigas e meus amigos de infância. Fizemos um clubinho no porão de minha casa, que nós, no primeiro coletivo de produção de minha vida, realizamos. Os guris mais velhos e mais fortes cavavam, cavavam, cavavam. Quando nossas cabeças não mais batiam no teto, nós, as meninas, começávamos o trabalho de decoração. Forramos o teto inteiro com fotos de artistas de novelas e fotonovelas. Pintamos as paredes e desenhamos o símbolo de paz e amor, colamos um poster de Cristo crucificado, e arrematamos com capas de disco de vinil em alguns cantos estratégicos. A inauguração de nosso primeiro centro cultural seria fechada, apenas para os nossos convidados especiais: nossos pais. Enquanto trabalhávamos arduamente no porão, digo, no centro cultural, minha mãe, a melhor assistente de produção que já tive, fazia doces, bolos, café com leite e sucos, para reanimar nossas pausas estratégicas. Depois de comer cachorro-quente, todo mundo voltava para o trabalho, animadamente.

Eu escrevi o primeiro roteiro de minha vida, um roteiro adaptado, da história de Chapeuzinho Vermelho. Escolhi o elenco. Minha amiga Fátima, que usava óculos, seria a vovozinha, minha amiga Rejane, a menina mais bonita da turma, seria Chapeuzinho, com certeza, e o Everton, que sempre foi muito doidão e tinha um gritinho daqueles, seria o Lobo Mau. Ele fez cabelo e maquiagem de todos. Soube que depois seguiu com sucesso nessa área. Ah, e escolhi os guris, os fortões, para serem os caçadores. Ensaiei separadamente, queria o efeito surpresa, e consegui. Chegou o grande dia, com o nosso porão, ops, nosso centro cultural lotado de pais coruja, alguns desconfiados-do-que-será-afinal-que-eles-fazem-lá-dentro? Quando o Lobo Mau vai comer a vovozinha, UAU, um se assusta da cara do outro. O riso foi geral. Fomos ovacionados. E eu fiquei frustrada. Não estava no script. Eu tinha que melhorar na próxima vez.

Não tivemos uma próxima vez. O pai de um de meus amigos, um militar, achava que o filho, para seguir a carreira dele, não poderia começar a se entusiasmar com essas coisas. E já que ele ajudou a cavar no porão, que cavasse em casa, também. Ele não pode ir mais em nossas reuniões. E, como protesto e em solidariedade, não continuamos.

Bem, eu continuei, de outra forma. Na escola, a professora de religião (lembro dela pela cara braba, voz esganiçada e coração enorme de bondoso) pediu que apresentássemos uma peça. Ai. Lá fui eu de novo. Desta vez foi o roteiro adaptado com o nome Romeu e Julieta nos tempos modernos. Escolhi a colega mais linda da turma, loira de olhos azuis e sonho de consumo de dez entre dez colegas. Mas escolhi também o colega mais lindo da turma, cabelos castanhos encaracolados com belíssimos olhos-verdes-de-peixe-morto. Sonho de consumo meu e de todas da escola. Escrevi falas sarcásticas, posto que desde aquela época já duvidava das possibilidades de concretização de um amor verdadeiro que não seja de pais e filhos ou de amigos. Bem, na peça funcionou. Fomos aplaudidos de pé. Eu espiava tudo pela cortina, feliz com tudo. Só não gostei da parte em que a professora de religião me levou quase à força para o palco, para ficar junto com a Julieta, o Romeu e todos os demais.
Desapareci por uns tempos. Até que meu pai me fez um convite que até então eu não tinha recebido. Acompanhar ele para ver um filme no cinema, no finado Cine Avenida, na Avenida João Pessoa. É que estava estreando o filme Um dia muito especial (1977), de Ettore Scola, com Marcello Mastroianni e Sophia Loren. Minha mãe não queria ir, e ele não queria ir sozinho. Eu fiquei de cara. Teria que deixar minha bicicleta, na qual eu me imaginava sendo a pantera Jill perseguindo os fora-da-lei na rua Waldomiro Lorenz, onde morei toda a minha infância.
Mas não podia negar o pedido de meu pai...e fui, emburrada.

Começou o filme. Começou uma página nova e definitiva em minha vida. Apesar de ser nova demais para entender a profundidade e a complexidade que um filme de Scola tem, talvez pelo fato de eu ter tido uma infância difícil, pelo fato de eu ser um bicho estranho, por ter feito filosofia, poesia, rádio, direitos humanos e outros que tais, bem, o fato é que eu saí daquela sala de cinema com dois metros de altura.

O dia que se passa entre a dona de casa rejeitada Antonietta (Sophia) e o radialista homossexual deprimido Gabrielle (Marcello) é tão inesquecível quanto o encontro de Hitler e Mussolini que acontece nesse mesmo dia, 08 de maio de 1939, na Itália fascista. Um dia muito especial recebeu o César e o Globo de Ouro como melhor filme estrangeiro, o David di Donatello de melhor filme e melhor atriz, e foi indicado ao Oscar de melhor ator e melhor filme estrangeiro.

E eu fui premiada com um dia muito especial para o resto de minha vida. Saí com dois metros de altura e uma idéia fixa na cabeça: é isso o que eu quero fazer na vida.
Cheguei em casa e, ouvindo o som de Led Zeppelin, voltei a escrever .
Boa semana!

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