Quem sou eu

Minha foto
Porto Alegre, RS, Brazil
escrevo a dor e o prazer de viver vivo para escapar da morte morro e acordo cada vez mais forte

terça-feira, 28 de julho de 2009

Cinema, direitos humanos e expectativas

Queridos e queridas,

Minha vida é um blog aberto. Desde que comecei a escrever aqui tem sido assim. Comentar sobre filmes, sobre a vida, sobre os fatos. Realidade e ficção. Que concebo e vejo de forma completamente diferente desde que passei a estudar na área de direitos humanos, e a ingressar, como autodidata, no mundo do cinema. Porque tenho muito claro a importância que a linguagem audiovisual tem na expressão, difusão, e reflexão crítica com relação a causas sociais, às violações cometidas nos direitos fundamentais e sociais de pessoas, de comunidades em situação de exclusão, de discriminação, de vulnerabilidade.

Essa combinação de ideais -cinema e direitos humanos - me levaram a pesquisar, roteirizar e posteriormente codirigir o documentário Perambulantes -A vida do povo de Acuab em Porto Alegre. O filme foi lançado em 2008, com 60 minutos de duração, e com financiamento do Fumproarte. Apresenta, em forma de um docudrama, o encontro da Cacique Acuab com o fotojornalista Carlos Carvalho, em um passeio por vários locais de Porto Alegre. Neste passeio, o jornalista (o "homem branco") descobre onde e como vivem os indígenas em Porto Alegre, através dos depoimentos de indígenas Guarani e Kaingang. A cacique relata a luta de sua comunidade em busca do reconhecimento da etnia Charrua, mostra o local onde vive sua comunidade, e apresenta ao fotojornalista aspectos de sua cultura (pelas danças, música, artesanato, cultivo de ervas, e pelos depoimentos de seus familiares).
O documentário reúne, ainda, depoimentos de pesquisadores na questão indígena, nas áreas de antropologia, educação, história, direito, assistência social, direitos humanos.
Um outro tema absolutamente novo e caro aos indígenas, a questão das ações afirmativas e o direito dos jovens indígenas ao ingresso no ensino superior, é também focalizado neste filme.
O documentário teve várias exibições públicas e gratuitas. O projeto previa a produção total de 150 DVDs, que foram doados às comunidades indígenas, escolas,universidades, Ongs.

Pois eu resumi a proposta deste documentário, em primeiro lugar, para reafirmar o meu compromisso com a causa indígena. O Brasil é historicamente violador de direitos indígenas especialmente no Norte e no Mato Grosso, onde índios são mortos, os suicídios crescem vertiginosamente, mas essas notícias não saem nos jornais. Esses são outros diferenciais de Perambulantes: por meio de depoimentos e efeitos de animação, o filme reconstrói a história do descobrimento do Brasil a partir do ponto de vista indígena, contrariando a história oficial do descobrimento. E uma extensa pesquisa de clipagem apresenta no vídeo manchetes de jornais, para se ter uma idéia de como os indígenas são tratados, retratados e destratados pelo governo, por setores da sociedade, pelos políticos que muitas vezes os tratam de forma assistencialista com fins eleitorais.

Eu e toda a equipe de produção tratamos deste tema com o carinho, a responsabilidade, e o respeito que merece. Foram quase cinco meses de edição. Foram muitas incontáveis noites insones, vendo, revendo, vendo de novo as cenas, procurando dar o melhor tratamento dentro de condições extremamente modestas que o orçamento permitia.

Tive e tenho muito orgulho desta equipe. Vestiram a camiseta pela causa indígena. Das produtoras que se tornaram parceiras do projeto desde o começo. Que procuraram sempre o apuro técnico que dão a todos os trabalhos que fazem. A todos os depoentes que com o maior prazer foram exaustivamente entrevistados, para deixar gravado seu testemunho pela causa indígena. E, especialmente, a todos os indígenas que participaram do filme, por nos acolherem afetuosamente, por perceberem que nossa intenção foi propiciar um registro de suas lutas, de suas reivindicações por uma realidade digna para suas comunidades. Meu contato com a Cacique Acuab foi desde o início, de sentir-me escolhida e de escolhê-la para ela, como mulher, como indígena e como cacique, ter a oportunidade, a primeira de muitas outras portas que se abrirão, para falar sobre a luta de seu povo pelo reconhecimento da etnia Charrua.

Quero dizer que ao longo do trabalho de pré-produção, e mesmo de produção, ouvi muitos especialistas que não corroboram este reconhecimento. Eu segui, mesmo assim. Quero dizer que houve inúmeros problemas de bastidores, de stress de produção, de falta de patrocínio, que surgem como tentações para nos fazer parar no meio do caminho. Não parei.

Hoje à tarde foi um dos dias mais melancólicos de meus 43 anos. Compareci a uma reunião de esclarecimentos na Defensoria Pública da União, juntamente com as duas colegas de direção/produção. Havia na sala, além da Defensora, da Cacique e sua filha, uma professora de antropologia da UFRGS, o representante da Funai, o antropólogo do Museu Antropológico do RS, outro antropólogo, e, soube somente no fim da reunião, que também lá estava uma repórter do Jornal Correio do Povo. Gostaria que a imprensa tivesse a mesma agilidade de ficar uma tarde inteira cobrindo as necessidades de umacomunidade indígena, po exemplo. Mas isso rende notícia?
A cacique, depois de seis meses de lançamento do filme, não o reconhece como representativo da causa Charrua. Querem comercializar cópias do DVD, como forma de indenização, mas um DVD que atenda as suas expectativas. O que seria uma nova edição. Só que sem financiamento do Fumproarte. Estamos nós, roteirista/produtora/diretoras, as legítimas autoras da obra, colocadas na berlinda, prestes a irmos ao banco dos réus, por danos morais ou à imagem ou outra alegação do gênero, porque pretensamente realizamos um filme que seis meses após passa a não corresponder às expectativas. Depois que saí daquele ambiente, só conseguia lembrar de Giordano Bruno. E por isso escolhi o cartaz do filme Amor sem fronteiras (produção de 2003 dirigida por Martin Campbell). Porque este filme mostra que a paixão por alguém ou por uma causa transforma, para sempre, a vida de uma pessoa. O que aconteceu comigo.

Chorei em casa, sozinha. Liguei para o meu melhor amigo. Pedi para minha filha voltar mais cedo do trabalho. Pensei, por um segundo, em rasgar meu diploma de especialista em direitos humanos. Pensei em jogar fora as matrizes dos vídeos em direitos humanos que venho produzindo, desde 2008, graças a uma equipe - muitos dos quais reunidos a partir do Perambulantes - que vem trabalhando de forma voluntária, pois até o momento não temos patrocínio para os vídeos em direitos humanos.

Lembrei que meu casamento começou definitivamente a terminar no dia em que eu, feliz, feliz, muito feliz, fui falar para o meu marido que meu primeiro roteiro, um documentário sobre a Cacique Acuab e os indígenas em Porto Alegre, tinha sido aprovado com três pareceres positivos no Fumproarte. Ele não me deu o apoio que eu pensei que teria. Criticava o tempo que eu dedicava a essa causa, e o dinheiro que tantas investi para poder fazer coisas que só quem entende de produção sabe do que estou falando. Deixei o casamento, mas não a causa.

E hoje foi, para mim, uma provação. Sou descrente, estou no limbo, mas me ocorre pensar em Jó.
Senti-me em uma babel. O mundo em que vivemos é muito complicado por uma razão muito simples: porque complicamos o simples.

Vou chorar o que tiver que chorar. Mas não vou parar. A causa indígena é muito maior.
Se houve qualquer desagrado a quem quer que seja mostrado neste filme, no meu entendimento, um sincero pedido de desculpas, um abraço forte e fraterno, seria selar um acordo de paz.

Mas vivemos no mundo das indenizações, dos danos morais. E do inusitado: eu, uma frustrada cineasta e uma frustrada defensora de direitos humanos, estou na berlinda por causa daqueles a quem dedicou estudo e afeto.A estas pessoas, o meu sincero pedido de desculpas, o desejo de um abraço fraterno, Mas nunca, um acordo no qual eu abandone, por um segundo, a consciência tranquila de ter feito o melhor possível.
Boa noite.

Um comentário:

  1. Querida Giancarla,
    sei muito bem a pessoa consciente, amiga e parceira que és, pois muito já me ajudaste também quando de ti necessitei. Fico ao mesmo tempo preocupado, triste, mas ciente da situação e certo de que não desistirás. as questões humanas não possuem padrões mesmo que assim o desejássemos, mesmo que nos educássemos infinitamente. O fator emocional é o que nos move e que nos permite ser diferentes dos animais.
    Conta comigo para algum relato ou o que seja, até mesmo um café e um ombro para desabar as mágoas que são na verdade a consequência das ações que práticamos. Ou estaríamos mortos, não é?
    Todos temos estas pendengas judiciais, (elas surgem de lugares inimagináveis!) e nem por isso podemos culpar os Direitos Humanos, ou só aIgreja e a Mídia... encare de frente, com toda a certeza e convicção da certeza que tens e a verdade vem com certeza.
    Deixo meu abraçoç fraterno e a minha esperança compartilhada contigo.

    ResponderExcluir