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escrevo a dor e o prazer de viver vivo para escapar da morte morro e acordo cada vez mais forte

terça-feira, 2 de junho de 2009

Vestido para amar e desamar

Queridos e queridas,

Eu imagino que quem escreve, compõe, faz poemas, roteiros, enfim, quem faz literatura, música ou cinema, tem um olhar torto. Alguém que vê uma pedra, e da pedra surge a inigualável pedra no meio do caminho. É alguém que vê um mapa, e dele extrai a mais linda homenagem que minha cidade, Porto Alegre, já recebeu. É alguém que olha para qualquer pessoa, qualquer coisa, e se inspira.
Tudo bem que às vezes um charuto é apenas um charuto. Mas como Freud muito bem descobriu, dolorosamente, por estar muito à frente de sua época, é que quase sempre um charuto não é um charuto. No cinema, na arte em geral, o simbólico, o imaginário preenchem o que a realidade por si não é capaz de captar. A gente voa sem ter asas.
Um vestido.
Apenas um vestido, e o genial Carlos Drummond de Andrade escreveu o "Caso do vestido". Triste, profundamente triste. Longo, como a agonia da história de quem usou o vestido. O vestido deixou de ser apenas um vestido. Transformou-se em personagem, história, tragédia. Inspirou a realização do filme O Vestido (2004), produção brasileira dirigida por Paulo Thiago, a partir de uma livre adaptação dessa obra de Drummond.
As artes da literatura e do cinema se fundem para contar uma história trágica, de amor, paixão, e de falta de amor, falta de paixão. O que uma mulher pode fazer pelo homem que ama? E o homem, ama?
Vestidos não falam, não sentem. Vestem. E são vestígios de amores e desamores. Na poesia, no cinema, e na vida real.


O caso do vestido (Carlos Drummond de Andrade)

Nossa mãe, o que é aquele vestido naquele prego? Minhas filhas, é o vestidode uma dona que passou. Passou quando, nossa mãe?Era nossa conhecida? Minhas filhas, boca presa.Vosso pai vém chegando. Nossa mãe, dizei depressa que vestido é esse vestido.
Minhas filhas, mas o corpo ficou frio e não veste.
O vestido, nesse prego,está morto, sossegado.
Nossa mãe, esse vestidotanta renda, esse segredo! Minhas filhas, escutaipalavras de minha boca.
Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se.
E ficou tão transtornado,se perdeu tanto de nós, se afastou de toda vida,se fechou, se devorou,
chorou no prato de carne,bebeu, brigou, me bateu, me deixou com vosso berço,foi para a dona de longe, mas a dona não ligou.Em vão o pai implorou.
Dava apólice, fazenda, dava carro, dava ouro, beberia seu sobejo,lamberia seu sapato.
Mas a dona nem ligou.Então vosso pai, irado, me pediu que lhe pedisse,a essa dona tão perversa,
que tivesse paciênciae fosse dormir com ele... Nossa mãe, por que chorais?Nosso lenço vos cedemos.
Minhas filhas, vosso pai chega ao pátio. Disfarcemos. Nossa mãe, não escutamospisar de pé no degrau. Minhas filhas, procureiaquela mulher do demo. E lhe roguei que aplacassede meu marido a vontade.
Eu não amo teu marido,me falou ela se rindo. Mas posso ficar com elese a senhora fizer gosto,
só pra lhe satisfazer,não por mim, não quero homem. Olhei para vosso pai, os olhos dele pediam.
Olhei para a dona ruim, os olhos dela gozavam. O seu vestido de renda, de colo mui devassado,
mais mostrava que escondia as partes da pecadora.
Eu fiz meu pelo-sinal,me curvei... disse que sim. Sai pensando na morte,mas a morte não chegava. Andei pelas cinco ruas, passei ponte, passei rio, visitei vossos parentes, não comia, não falava, tive uma febre terçã,mas a morte não chegava.
Fiquei fora de perigo,fiquei de cabeça branca, perdi meus dentes, meus olhos, costurei, lavei, fiz doce, minhas mãos se escalavraram,meus anéis se dispersaram, minha corrente de ouropagou conta de farmácia.
Vosso pai sumiu no mundo.O mundo é grande e pequeno. Um dia a dona soberbame aparece já sem nada, pobre, desfeita, mofina,com sua trouxa na mão.
Dona, me disse baixinho,não te dou vosso marido, que não sei onde ele anda.Mas te dou este vestido, última peça de luxoque guardei como lembrança daquele dia de cobra,da maior humilhação.
Eu não tinha amor por ele,ao depois amor pegou. Mas então ele enjoadoconfessou que só gostava
de mim como eu era dantes.Me joguei a suas plantas, fiz toda sorte de dengo,no chão rocei minha cara, me puxei pelos cabelos,me lancei na correnteza, me cortei de canivete,me atirei no sumidouro, bebi fel e gasolina,rezei duzentas novenas, dona, de nada valeu:vosso marido sumiu.
Aqui trago minha roupaque recorda meu malfeito de ofender dona casadapisando no seu orgulho.
Recebei esse vestido e me dai vosso perdão.
Olhei para a cara dela,quede os olhos cintilantes? quede graça de sorriso,quede colo de camélia?quede aquela cinturinhadelgada como jeitosa? quede pezinhos calçadoscom sandálias de cetim?
Olhei muito para ela, boca não disse palavra. Peguei o vestido, pusnesse prego da parede.
Ela se foi de mansinhoe já na ponta da estrada vosso pai aparecia.Olhou pra mim em silêncio,
mal reparou no vestidoe disse apenas: — Mulher, põe mais um prato na mesa.Eu fiz, ele se assentou, comeu, limpou o suor,era sempre o mesmo homem, comia meio de ladoe nem estava mais velho.
O barulho da comidana boca, me acalentava, me dava uma grande paz,um sentimento esquisito
de que tudo foi um sonho, vestido não há... nem nada. Minhas filhas, eis que ouçovosso pai subindo a escada.
(extraído do livro "Nova Reunião - 19 Livros de Poesia", José Olympio Editora - 1985, pág. 157.)
Amem!

Um comentário:

  1. Simplesmente F-A-N-T-Á-S-T-I-C-O! Drummond sempre será um dos melhores! Sempre! O vestido não era só o vestido. Ele era aquilo que a dona dele foi, um dia. Ele era aquilo que alguém desejava ser, um dia. Ele era a projeção de sonhos, vontade e desejos. Ele era os sentimentos. Ele era muito mais do que um vestido.

    Beijoooooooooo!!!

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