Quem sou eu

Minha foto
Porto Alegre, RS, Brazil
escrevo a dor e o prazer de viver vivo para escapar da morte morro e acordo cada vez mais forte

sábado, 23 de maio de 2009

Amantes imortais

Queridos e queridas,

Estive em Paris há muitos anos, mais precisamente entre o final de 1986 e o começo de 1987. Vendi minha moto zero quilômetro, que eu havia recém retirado após pagar cinquenta parcelas em um consórcio. Meus pais e meu ex-marido também me ajudaram. A vontade de conhecer a terra natal de Jean-Paul Sartre, filósofo, dramaturgo e escritor, cuja obra eu devorava, me levou a cruzar fronteiras. Ir para um país onde se fala francês sem eu falar francês. Visitar lugares que eu conhecia apenas nos livros. Ficar longe de pessoas amigas para desbravar uma terra desconhecida. Desenraizar. É difícil.

Não fui como turista. Não fiquei deslumbrada em ver de perto os cartões postais da cidade mais charmosa, mais isso e mais aquilo. Não fui como estudante, ainda que eu tenha aproveitado para conhecer museus, bibliotecas, livrarias, e universidades. Fui movida pela paixão. Pela literatura, pela filosofia. Pelo escritor e pelo filósofo. Fui ao cemitério de Montparnasse e vi no túmulo de Sartre as inscrições de seu nome e de Simone de Beauvoir. Lembrei-me então de um casal de amantes tão ou muito mais apaixonados do que eles, e que tiveram uma relação tão ou muito mais polêmica do que a deles, que foi uma relação aberta, porque viveram na Idade Média, e porque amaram-se demasiadamente apesar dos dogmas religiosos: Abelardo e Heloisa. Eles estão enterrados juntos no cemitério Pére Lachaise.

Sentada sozinha no Cafe Les Deux Magots, um dos preferidos de Sartre, eu degustava um café após o outro, para aquecer o corpo e a alma naquele frio inenarrável, e pensava no que Sartre e Simone deviam ter conversado naquele mesmo local. O que teria atraído um pelo outro, de tal forma que nem a morte os separou. A comparação com Abelardo e Heloisa era inevitável. Havia chama, paixão, desejo, sexo. E o resto tornou-se o resto. Diferentes épocas, diferentes desfechos. Nenhuma das duas relações terminou no "e viveram felizes para sempre", mas eu faria um the end com "e morreram felizes para sempre". Porque Abelardo, mesmo sendo castrado como castigo por amar Heloisa, nunca deixou de amá-la. Heloisa encerrou-se em um convento, maldizendo Deus e a humanidade pela tragédia, mas amando-o mais ainda, se é que isso é possível. Trocaram cartas sempre. Não se falavam nem se encontravam mais, mas nunca deixaram de se comunicar, e o amor, o desejo, a paixão, eram tão ou mais fortes quanto era a ausência física. Simone, mesmo tendo tornado-se ícone do feminismo e da liberação feminina, admitiu que sentia ciúmes de Sartre, e que muitas vezes sentiu-se desconfortável com a relação aberta que mantinham. Amava-o tanto que partilhava desse relacionamento, que é absolutamente diferente do que existe hoje. O "ficar", os "casos", não é nada disso. Amar e desejar tanto alguém e apesar disso saber que o outro é o outro, e que deve respeitar a sua liberdade. Quantos conseguem ter e manter uma relação assim? Uma relação verdadeira é aquela onde a liberdade é preservada. Não somos pássaros na gaiola.
Uma relação dura por vários motivos: o ideal, é que seja por amor, afeto, paixão, desejo. Mas outros tantos motivos também fazem uma relação perdurar: conveniência, comodismo, medo do novo, medo de ficar só, dependência emocional, financeira, submissão, carência, tradição, costume, culpa, medo de gostar de verdade de alguém.
Por isso, Abelardo e Heloisa são exceções, e continuarão sendo, passados séculos do período medieval. Porque eles ousaram, desafiaram, foram corajosos. Amaram-se tantas e tantas vezes, em todos os locais onde puderam, nas sacristias, nos confessionários e nas catedrais. Cederam a seus instintos porque sabiam, como estudiosos da filosofia, que no amor e na paixão a lógica não tem lógica alguma. O sentido da vida, é cada um que constrói pelos seus atos. Abelardo foi um sartreano, e Sartre foi abelardiano.
Hoje, no século do hiper-pós-moderno, as relações estão se tornando cada vez mais efêmeras, coisificadas, baseadas na aparência e na conveniência. O mundo burguês, dos "normais", que Sartre tanto combatia em toda a sua obra,e o mundo dos dogmas e preconceitos que Abelardo desafiou, está mais presente do que nunca.

Enquanto os passarinhos voam e cantam, eu olho e vejo tantos seres engaiolados. Uns sós, outros acompanhados.
Voem e cantem!

2 comentários:

  1. Lindooooooo o post!!!! Qlqr comentário a respeito dele é praticamente insignificante... Pq o texto é realmente belo, profundo, poético e sincero! Ameiiiiiii!!!!!!!!!!

    ResponderExcluir
  2. Triste e belo texto! Sincero e engajado, assim como Sartre foi esperançoso em libertar a humanidade.

    ResponderExcluir